Abdias Morto da Silva

Ilustração de um zumbi cor cinza com um leve sorriso, sentado num bando de praça com uma árvore ao fundo. O título destacado em letras brancas diz Abdias Morto da Silva. Abaixo, aparece a indicação de que o texto é da coluna Dário Castro. O logo da Revista Meu Piauí aparece no canto inferior direito.

Cansado da morte, Abdias resolveu mudar de vida. 

Espreguiçou-se no caixão e decidiu que era hora de esqueletar por aí. 

Forçou a tampa. Nada. Forçou de novo. Nada. Mais uma vez, com a fúria do sepulcro… e conseguiu escapar. 

Venceu a terra, primeiro com o braço cadavericamente azul. Estava livre. Ajeitou as calças e saiu. 

Na longa caminhada até o centro da cidade, não encontrou uma alma viva. 

Sentou-se, solene e cansado na madrugada, num banco da Avenida Frei Serafim. 

Um vira-lata chegou desconfiado, cheirando as canelas de Abdias. 

-Sai, cachorro!

Vociferou ele com ares de autoridade, mas nem tão severa a ponto de irritar o animal de tom caramelo. E viu o bicho ir embora. 

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Contemplou a paisagem e o doce silêncio. De longe, o canino olhava com olhos de solidão e de fome. 

Abdias continuava o mesmo homem que fora em vida, sempre solícito e amigável com que encontrasse. Por vezes passaram-lhe a perna, mas ele nunca se queixou. Sua vida era pensar nos outros. E foi justamente negligenciando suas necessidades que ele morreu.

Abaixou-se no banco, pegou o próprio pé, arrancou da perna e ofereceu ao colega de quatro patas, que chegou com as orelhas para trás, ameaçando fugir ao menor sinal de perigo. 

O cão abocanhou o presente e ganhou o mundo. Abdias deitou os dois braços no encosto do banco, respirou fundo e disse:

-P*ta que pariu! Como é que e vou voltar lá pro São Judas Tadeu agora?

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Dário Castro

Escritor, Jornalista e Mestre em Estudos Culturais.
Contato: [email protected]

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