Cansado da morte, Abdias resolveu mudar de vida.
Espreguiçou-se no caixão e decidiu que era hora de esqueletar por aí.
Forçou a tampa. Nada. Forçou de novo. Nada. Mais uma vez, com a fúria do sepulcro… e conseguiu escapar.
Venceu a terra, primeiro com o braço cadavericamente azul. Estava livre. Ajeitou as calças e saiu.
Na longa caminhada até o centro da cidade, não encontrou uma alma viva.
Sentou-se, solene e cansado na madrugada, num banco da Avenida Frei Serafim.
Um vira-lata chegou desconfiado, cheirando as canelas de Abdias.
-Sai, cachorro!
Vociferou ele com ares de autoridade, mas nem tão severa a ponto de irritar o animal de tom caramelo. E viu o bicho ir embora.
Contemplou a paisagem e o doce silêncio. De longe, o canino olhava com olhos de solidão e de fome.
Abdias continuava o mesmo homem que fora em vida, sempre solícito e amigável com que encontrasse. Por vezes passaram-lhe a perna, mas ele nunca se queixou. Sua vida era pensar nos outros. E foi justamente negligenciando suas necessidades que ele morreu.
Abaixou-se no banco, pegou o próprio pé, arrancou da perna e ofereceu ao colega de quatro patas, que chegou com as orelhas para trás, ameaçando fugir ao menor sinal de perigo.
O cão abocanhou o presente e ganhou o mundo. Abdias deitou os dois braços no encosto do banco, respirou fundo e disse:
-P*ta que pariu! Como é que e vou voltar lá pro São Judas Tadeu agora?