Tive um colega russo. Ele me ensinou a beber vodka somente pura. Entre as curiosidades que aprendi com ele, está a etiqueta boêmia do seu país. Por exemplo, ao servir, um russo deve sempre encher o seu próprio copo por último, e os copos devem estar sempre sobre a mesa. Faça diferente disso e seja execrado como um bebum atrevido e insociável.
Seu nome é Evgeni. Estudamos Alemão juntos na pequena Dingden-Hamminkeln, no fronteira com a Holanda. Ele decidiu que em Alemão chamaria-se Eugen, isso para não confundir ninguém com seu russo nome. Essa é uma tática valiosa para chineses e gregos, que muitas vezes são trocados por outros que em nada lembram o antigo.
Eugen falou-me de um personagem fascinante: Ichtiander. Ele me contou, num alemão turístico, bêbado e pausado, gesticulando com as mãos sempre que necessário, que se tratava de um homem-peixe que, quando criança, recebeu de seu pai, um médico, guelras numa cirurgia para salvar a sua vida. Vítima da ganância dos capitalistas que pretendiam usá-lo como caçador de pérolas, Ichtiander cresceu para ver o mundo com outros olhos e arriscar perder a sua identidade humana vivendo isolado no mar.
Contei a Eugen sobre Crispim, o cabeça-de-cuia, que tomei a permissão de traduzir para “Cuiakopf“, isso após mostrar, com as mãos, quão grande era uma cuia. Crispim, por sua vez, perdeu a humanidade por causa da fome, atacou a mãe e foi viver no rio, como um monstro amaldiçoado.
Ichtiander e Crispim têm muito em comum. São fantasias da realidade de um povo. Encontraram-se os dois naquele dia para me lembrar que as barreiras da distância e da língua podem ser vencidas num passe de mágica quando nos vemos no outro.
As infinitas diferenças esmaeceram. Eu, que vivi a minha infância em São João do Piauí durante a grande seca do início dos anos 80, que saiu até no Jornal Nacional, e Eugen, que viveu a sua em Ufa, na Rússia socialista, achamos semelhanças entre nós no que há de mais espontâneo e necessário num indivíduo, as suas raízes.
De volta ao presente, digo com certa tristeza que me causa ainda surpresa perceber, com meu sotaque nordestino, que por aqui a coisa “tá russa”; que apesar das tantas familiaridades é comum a insistência do brasileiro em não falar a mesma língua. É costume desprezar os costumes e desconhecer as regionalidades, atitude que abre as portas e convida o preconceito. Desvaloriza-se e condena-se, assim, a pluralidade.
Pouco sabemos exaltar a identidade que nos é particular sem que confrontemos e subjuguemos outra. Fazemos monumentais as mínimas diferenças e às poucas discordâncias nos afastamos mais e mais dos outros.
E quando nos perdemos do outro, perdemo-nos de nós mesmos. Isolados em nossos menores mundos, somos ichtianders e crispins, escravos de uma maldição que nos toma a identidade mais humana.