“Pessoas do nosso convívio, afáveis e boas, parecem agora completamente diferentes. Elas rejeitam a ciência, desprezam pesquisas, dados ou estudos e abraçam teorias conspiratórias, colocando até a própria vida em risco.”
Conheço pessoalmente algumas dezenas de pessoas que, assim como eu, são taxativas em afirmar que o negacionismo é uma coisa ruim. Essas pessoas tendem a ser ponderadas e a não cair em discurso ideológico alarmista.
Todas elas, porém, têm alguma crença dogmática ou acreditam em alguma pseudociência, como astrologia, mau-olhado, simpatia, lei do retorno, homeopatia, destino, psicografia ou Deus. Eu mesmo sou incapaz de deixar meu chinelo desvirado no chão. Dar sorte ao azar? Jamais.
Aprendemos a enxergar como negacionismo o discurso da extrema-direita atabalhoada, antivacina e paranóica, mas, num país de muitas crenças e de forte sincretismo religioso como o nosso, o problema é mais grave e profundo. E por quê? Porque, no mundo mágico das crendices, a ciência tem menos apelo e espaço.
Não acho que seja exagero dizer que o método científico é impopular no Brasil. Falar sobre pesquisa científica, comprovação científica, dados científicos ou teoria científica não é fácil. Anos atrás, vi alguém comentando que a evolução é apenas uma teoria, não um fato. Durante a pandemia, Deus sabe o que eu passei enfrentando a avalanche de amigos e familiares defendendo o uso da cloroquina contra a covid. Nada que eu falasse sobre método e estudo científico surtia qualquer efeito.
Hoje, ciente dos meus próprios negacionismos, compreendo que essa dificuldade de diálogo nasce da diferença abissal entre os raciocínios dogmático, empírico e científico. O raciocínio dogmático premia a experiência individual e chega à verdade por intermédio do divino. A verdade dogmática, portanto, é imutável. O raciocínio empírico premia a experiência individual e chega à verdade por intermédio dos sentidos. A verdade empírica é aparente. O raciocínio científico busca rejeitar a experiência individual e a chegada à verdade por intermédio do divino ou dos sentidos. A verdade científica é verificável.
Vamos supor que uma criança passou o dia inteiro observando o sol. Usando o seu raciocínio empírico, ela dirá que viu o sol se mover, aparecendo no horizonte retilíneo e desaparecendo no outro lado. A mãe do menino, professora de ciência, explicará para ele, usando o raciocínio científico, que, apesar de parecer, a terra não é plana, mas algo como uma bola e gira em torno do sol. A avó do menino, religiosa fervorosa, usando o raciocínio dogmático, vai ensinar para o menino que Deus criou o mundo e tudo que tem nele para que o homem dominasse.
Podemos concluir, com esse exemplo, que a verdade do menino é aparente, ou seja, é aquilo que ele percebe da sua própria perspectiva. A verdade da mãe é verificável, ou seja, através de experimentos é possível checar aquela verdade. Já a verdade da avó é imutável, ou seja, é o que está no livro sagrado e nos ensinamentos da igreja.
Como sociedade, somos empíricos e dogmáticos, ou seja, carregamos verdades imutáveis e aparentes. O raciocínio científico está à margem do nosso caldo cultural, da nossa formação de identidade. E não deveria estar, pois a ciência é uma ferramenta poderosa para não somente compreendermos o mundo, mas também para tomarmos decisões sobre as questões mais complexas.
No entanto, todos estamos acompanhando o crescimento da radicalização. Pessoas do nosso convívio, afáveis e boas, parecem agora completamente diferentes. Elas rejeitam a ciência, desprezam pesquisas, dados ou estudos e abraçam teorias conspiratórias, colocando até a própria vida em risco.
Estamos vendo o negacionismo assumir muitas formas. A negação da eficácia das vacinas, a rejeição da teoria da evolução e o terraplanismo estão entre nós, ajudando a criar uma realidade paralela e, com ela, atritos entre pessoas que eram próximas umas das outras e já não se suportam. É importante entender o apelo dos discursos extremistas e o senso de comunidade que eles criam para poder enfrentar esse grave problema social moderno.
Nós, que tivemos uma formação científica quadrada e tediosa, precisamos ensinar, desde cedo, como a ciência funciona, como são testadas as teorias e como a evidência científica é avaliada. Há beleza e magia nisso tudo.
Precisamos também promover uma cultura de pensamento crítico, criativo e lógico na sociedade. E isso só será possível se combatermos de frente toda e qualquer força que nos empurra para o sentido contrário.
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